segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Mais uma digressão pessoal





Digressão é mudar de assunto, necessária para ainda ficar no tema: Pelados, mas santos, por uma teo-filo-missio-antropo-socio-logia sem ataduras culturais.


Bráulia Ribeiro

Enquanto eu caminhava pela mata, nos sobes e desces poças e troncos meu espírito se angustiava. Meus companheiros de caminhada são dois colegas de missão, um casado com uma de minhas melhores amigas, outro solteiro recém-chegado, estrangeiro, que conheço pouco. A possibilidade de ter aqueles olhares masculinos sobre meu corpo nu, me incomodava profundamente. Para os índios a nudez é parte da vida, como eu já disse uma sociedade nua pode ser até mais honesta, os traseiros são rostos, e como nos rostos o refletir do tempo não são uma vergonha, mas uma honra. Mas para nós animais urbanos pós-modernos cidadãos do país campeão mundial em implantes de silicone não é assim.

“- Sempre me meto em confusões, porque eu tinha que inventar esta visita, os índios nem se importam comigo, sou mulher e mulher não vale um tostão, se fosse o Reinaldo seria melhor, ele é forte, eles iriam gostar de revê-lo, mas eu, tô por fora, não posso nem cantar como pajé porque mulher não canta, houve só uma há muito tempo atrás… E agora vou ter meu traseiro exposto pra estes caras… Suprema humilhação, se eu fosse homem nem iria ligar, mas sou mulher e meu traseiro tem que ser uma espécie de patrimônio pessoal…. Quem sabe eu deveria ter feito implante ou lipo, esta vida de missões, nunca se tem tempo ou dinheiro para se cuidar de si mesmo…”

O sentimento de inadequação me sufocava. Dizem que a floresta absorve muito mais gás carbônico do que é capaz de expelir, e o oxigênio é abundante. Mesmo assim ela vai se tornando numa caverna escura na medida que se entra nela, e te envolvendo com um sentimento claustrofóbico imenso. Uma outra mulher da missão ia comigo, mulher de Deus também casada, alguns anos mais jovem e que anda investigando a luta contra as injustiças sofridas pelas mulheres ao redor do mundo. Não liguei as coisas, não entendi o que estava acontecendo, só continuei a me lamuriar pelo que teria que passar, e a questionar a validade de meu ministério ali.

Na verdade o sentimento de inadequação já me perseguia há algum tempo, desde que há alguns meses atrás assumi o posto de presidente nacional da missão. A partir daí passei a viver como um condenado diante do pelotão de fuzilamento. Um gesto fora do lugar, uma palavra, um grito e pumba, pápápápá, seria o fim… Porquê? Sou mulher. Carrego o mundo no ventre, gero o mundo. Ali na selva todo este sentimento injusto de cobrança se tornou no pavor concreto de ser vista nua. Ficaria nua não só no corpo, mas no caráter, no ministério, na personalidade, na espiritualidade. Seria vista no raio x, eu mulher, mais branca do que deveria, mais pesada do que deveria, imprópriamente mulher no mundo da supremacia masculina.

Foi no meio de uma trilha completamente alagada que a voz de Jesus começou a sussurrar no meu ouvido. Mais de meia hora com água pela cintura, cruzando um igapó, (mata submersa) carregando a mochila mais alta para não molhar e fincando uma vara pontuda na lama à frente antes de pisar para ter certeza de que não haviam arraias deitadas esperando para enterrar seu ferrão nos nossos pés. O frio da água, a lama dificultando os passos, a sombra do igapó e a voz de Jesus me dizendo: “Fica triste não minha filha, eu te enviei. Você é mulher mas não é inadequada. É como mulher que você vai pisar lá, emissária da minha palavra. Me lembrei de minhas colegas de missão que por muitos anos trilhavam aquele mesmo caminho carregando nas costas seus filhos para ir viver na aldeia. Pensei em toda revelação do amor de Deus que elas representavam como mulheres do mundo de fora, estrangeiras aquela realidade indígena pisando ali, orando ali, cantando, vivendo Jesus e seu amor pelas viúvas e orfãos da tribo, pelas meninas adolescentes, pelos garotos.

Mulher, mas não inadequada, acho que repetia em voz alta, enquanto dava meus passos desajeitados na lama. Chegamos depois de quase seis horas de caminhada pesada. Revi minhas amigas antigas, vi as viúvas, as velhas e as novas adolescentes casadoiras. Conversamos principalmente sobre sexo e comida (este é o principal tema de conversas em todo mundo creio eu, e na tribo também). Pedi uma tanga emprestada, veio o ritual da pintura, com leite de peito e cuspe. Veio a nudez, e ela me caiu bem. Via os colegas de missão há alguns metros de distância um tanto constrangidos. Via a alegria de minhas amigas indígenas e como celebraram minha chegada, meus seios à mostra, mas não me envergonhava mais. Não sou inadequada. Estava ali por Jesus.

Minha colega tomou coragem na minha coragem e também se desnudou. As meninas da tribo então nos tomaram pela mão e nos levaram para uma outra casa comunitária próxima onde celebramos longamente com muito canto, choro, orações a presença de Deus no nosso meio, no meio do povo, seu consolo para os corações cansados, seu perdão para os corações amargurados. Tomamos autoridade de pajés espirituais, mesmo que para aquela cultura não fosse totalmente apropriado mulheres fazerem isto. Para Deus eu era.

Na volta um dos companheiros disse que não precisávamos ter ido tão longe.

Me desculpe colega, mas vou até onde Jesus vai comigo. E ele foi além da vergonha da nudez para a vergonha da cruz… Quando Pedro resistiu contra a necessidade de Jesus ir para Jerusalém para morrer, eu também resisto às vozes religiosas que diminuem a amplitude do sacrifício e a ousadia necessária na obra missionária. Eu havia me desnudado não só no físico, mas do meu machismo. Eu era machista e pequena aos meus próprios olhos e não sabia. A doença do machismo estava oculta na mente de uma mulher que representa o conceito quase que oposto a ela.

Eu precisava ir “tão longe” e o povo também precisava de me ver ali encarnada de índia, literalmente. Não sei se os que lerem vão entender o que quero dizer. Acho que tem a ver com ser mulher, e sentir nua neste mundo masculino, e do valor que temos diante de Deus apesar de tudo… É isto.



Bráulia Ribeiro, missionária e autora de Chamado Radical. Este ensaio é parte do novo livro em gestação, gentilmente twittado pela autora para o Genizah. Leia outros trechos em Oodoborogodo's Blog


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